A Guerra na Ucrânia — “Europa do Leste e Rússia – Esquecemos o desastre económico que criámos” (1/4).  Por Heiner Flassbeck

Seleção e tradução de Francisco Tavares

12 m de leitura

Europa do Leste e Rússia – Esquecemos o desastre económico que criámos – Parte 1

 Por Heiner Flassbeck

Publicado por  em 3 de Março de 2022 (original aqui)

 

O conflito que o mundo enfrenta actualmente na Ucrânia não pode ser compreendido ignorando a forma como “o Ocidente”, após a queda do Muro de Berlim, conquistou a Europa Oriental, incluindo a Rússia, com uma doutrina económica que não só foi inapropriada como trouxe danos massivos aos países e uma sensação de serem gente de segunda classe.

O resultado é um grande número de Estados que hoje em dia não são considerados como Estados falhados somente porque foram capazes de delapidar as suas matérias-primas na sequência da abertura de todos os mercados. Isto e absurdas tentativas de privatização orquestradas pelo Ocidente abriram caminho a uma oligarquia que foi inicialmente saudada pelo Ocidente como uma “solução privada” para o problema estrutural, mas que se revelou fatal para as oportunidades de desenvolvimento dos países.

Além disso, foram precisamente estas estruturas oligárquicas que bloquearam desde o início qualquer caminho para uma democracia funcional, porque só os regimes que chegaram a acordo com os oligarcas foram autorizados por eles. No entanto, até hoje, as pessoas no Ocidente não querem tomar nota disto. Até há poucos dias, as empresas ocidentais estavam felizes por negociar com as empresas dos oligarcas e vender-lhes os nossos produtos de luxo.

A frustração e as esperanças desiludidas não afectam apenas as relações políticas entre o Leste e o Ocidente. Pior ainda é o facto de o Leste se sentir colectivamente esgotado economicamente. No entanto, muitos países mais pequenos, em particular, ainda acreditam que existe uma maneira fácil de sair da sua miséria, que é juntar-se ao Ocidente. Muitos ainda não conseguem acreditar que o Ocidente nunca teve um conceito de integração e desenvolvimento e ainda não o tem (como mostra o meu artigo sobre a Europa Oriental).

 

O muro na mente das pessoas

Há trinta anos atrás, quando o muro [de Berlim] caiu na Alemanha, os muros na mente de muitos políticos e economistas do Ocidente infelizmente permaneceram. Três décadas passaram em grande parte sem proveito, se olharmos para o fosso económico que a maioria das regiões europeias situadas a leste do Elba têm com o Ocidente “dourado”.

Isto começa logo na Alemanha Oriental, onde apesar da ligação completa imediata ao milagre económico e à tremenda “ajuda à reconstrução”, ainda hoje a economia está muito atrasada e grande parte da população tem a impressão de que não é realmente tratada da mesma forma. Quanto mais para leste se vai, pior fica.

A Ucrânia e a Rússia são exemplos clássicos. O rendimento per capita russo estagnou a um nível baixo em comparação com os EUA (Figura 1). A Ucrânia chegou mesmo a ficar significativamente atrás da Rússia nesta medida crucial desde a crise financeira de 2008/2009, a um nível muito inferior. Em contraste, a China consegue melhorar constantemente em relação aos EUA (que aqui foi fixada em cem).

Figura 1 – Produto Interno Bruto per capita em comparação com os EUA (1)

(1) Produto Interno Bruto per capita em paridade de poder de compra (PPP 2017 Dólar) em relação ao dos EUA. (2) Total dos PIB em PPP-2017-Dólar por país dividido pelo total da população dos países da UEM em relação ao dos EUA

                                 Fonte: cálculos do FMI, World Economic Outlook, Novembro de 2021

 

A figura 2 mostra que na Ucrânia o desenvolvimento da economia se deteriorou mais uma vez desde 2015. Após uma profunda recessão, o produto interno bruto per capita mal aumentou até à data; o país já não está a fazer qualquer progresso económico desde o momento em que poderia sentir-se parte do Ocidente.

 

Figura 2 – Produto Interno Bruto per capita

(1) Produto Interno Bruto per capita em paridade de poder de compra (PPP 2017 Dólar) em relação ao dos EUA. (2) Total dos PIB em PPP-2017-Dólar por país dividido pelo total da população dos países da UEM

Fonte: cálculos do FMI, World Economic Outlook, Novembro de 2021

 

Isto deve ser claramente visível: O vizinho da Rússia, cujo destino lamentamos hoje, foi trazido por conselheiros ocidentais sob a liderança do Fundo Monetário Internacional (FMI) para uma situação económica que foi e é absolutamente fatal para o funcionamento de uma jovem democracia e para as perspectivas de vida do seu povo.

 

O “Consenso de Washington”, o começo do fim

Nos anos 90, eu próprio e alguns colegas tentámos contribuir para a reconstrução das estruturas económicas e para a tomada racional de decisões económicas numa das antigas repúblicas soviéticas, o Cazaquistão. Visitámos o país várias vezes por ano e tivemos a oportunidade de discutir questões básicas de política económica com políticos de alto nível e depois de apresentar as nossas próprias recomendações ao governo. Colegas do DIW viajaram de forma igualmente intensiva na Rússia, Ucrânia e outros países.

Mas onde quer que fôssemos, outros já lá se encontravam. Porque todas as antigas repúblicas soviéticas estavam a lutar por uma rápida transformação no sentido de uma economia de mercado e, portanto, uma ligação ao sistema financeiro global, praticamente todos os governos pediram imediatamente ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial. Mesmo quando a liderança política tinha a impressão de que não se devia confiar unilateralmente nas instituições de Washington, após pouco tempo houve necessidade de dólares que só o FMI podia cobrir. Assim, o FMI estava em todo o lado e imediatamente em posição de estabelecer um monopólio no aconselhamento aos governos. Isto era verdade mesmo para a Rússia nos anos 90.

Evidentemente, o chamado Consenso de Washington foi pregado pelas instituições de Washington, nomeadamente a firme crença nas bênçãos da economia de mercado, do comércio livre e da livre circulação de capitais. Tudo isto foi coroado pelo monetarismo, ou seja, a convicção, agora largamente ultrapassada mesmo na doutrina prevalecente, de que a escalada da inflação tinha de ser evitada por uma rigorosa limitação da oferta de dinheiro por um banco central independente. Orçamentalmente, é claro, o consenso prescreveu frugalidade, ou seja, a tentativa do Estado de sobreviver com as taxas de imposto mais baixas possíveis e sem dívida pública. Em termos do sistema monetário, ou seja, a questão de como fixar a taxa de câmbio das moedas nacionais (algumas das quais tinham acabado de ser criadas), o FMI defendeu o que ainda hoje defende, ou seja, taxas de câmbio absolutamente fixas ou taxas de câmbio livremente flutuantes.

Não se pode imaginar a ingenuidade e brutalidade com que o FMI e o Banco Mundial impuseram simultaneamente as suas “teorias” nestes países. Lembro-me vivamente de uma discussão acesa entre o nosso grupo consultivo e o então chefe de missão do FMI em Almaty, que tinha ideias de política monetária (relativamente às famosas expectativas “racionais” da população) pelas quais teria sido ridicularizado se o tivesse proposto para os EUA. Mas ele estava a defendê-la seriamente para um país que tinha acabado de introduzir uma nova moeda e que tinha acabado de passar por várias décadas de uma economia planeada, e onde o cidadão comum nem sequer sabia o papel que um banco central tinha de desempenhar.

O “aconselhamento” das instituições de Washington atingiu o clímax com a decisão, que foi uma surpresa completa para os conselheiros alemães, de converter o seguro de pensões no Cazaquistão num sistema de capitalização. O FMI e o Banco Mundial disseram que não havia alternativa e que era uma forma de resolver os problemas sociais e financeiros do país de uma só vez. O governo implementou-o num curto espaço de tempo, contra os nossos conselhos, e os únicos beneficiários foram os recém-criados “fundos de investimento” que levaram o dinheiro dos cidadãos e o repassaram ao Estado. O maior destes fundos era gerido pelo Deutsche Bank.

No entanto, não foi apenas a Europa de Leste que implementou esta maldição. Era também uma prática comum no Ocidente. O actual presidente do banco central da Áustria, Robert Holzmann, esteve significativamente envolvido na tentativa de difundir este conceito totalmente absurdo durante muitos anos enquanto trabalhava para o Banco Mundial, embora o Banco Mundial devesse ter sabido pelas suas experiências na América Latina (o Chile foi o pioneiro de um sistema financiado com os Chicago Boys sob a ditadura de Pinochet) que danos isto poderia causar. Afinal, não esqueçamos que a Alemanha também foi infectada por este vírus e os Vermelhos-Verdes introduziram a pensão de Riester no início dos anos 2000 sem qualquer discussão séria [1].

 

Comércio, transformação e moedas

No entanto, a “consulta” dos países em transformação foi coroada quando se tratou da questão da moeda, que também ficou completamente por resolver noutras regiões do mundo. Na fase de transformação de uma economia planificada para uma economia de mercado, a tarefa mais difícil para praticamente todos os países era evitar uma inflação aberta e persistente, porque a inflação outrora suprimida na economia planificada se tornou óbvia e em todos os países os trabalhadores tentaram aproximar-se do nível do Ocidente, aumentando rapidamente os salários das empresas que não tinham qualquer ideia do que iriam enfrentar no mercado mundial quando as fronteiras se abrissem.

Porque para o FMI os salários como “preços de mercado” eram um tabu completo para a política económica e não havia nos sindicatos em funcionamento alguma percepção das relações macroeconómicas, houve regularmente uma inflação massiva nos anos após a queda das fronteiras – na Ucrânia ela foi particularmente pronunciada. A única solução que o FMI podia pensar era, evidentemente, restrições de política monetária através de taxas de juro elevadas e/ou a fixação de uma taxa de câmbio fixa em relação a uma moeda ocidental (como âncora), que deveria disciplinar os produtores nacionais através de importações baratas.

Na Ucrânia, a taxa de câmbio para o dólar foi fixada após o fim da hiperinflação no início do processo de transformação e mantida até 2014. Depois disso, a moeda depreciou-se drasticamente, mas aparentemente permaneceu um peão na especulação monetária ocidental, como indicado pelas fortes flutuações da taxa de câmbio (Figura 3). A Rússia também atravessou um período absolutamente caótico de ajustamentos monetários, que terminou com a chamada crise russa e prejudicou enormemente o país. Voltaremos a ambos no decurso desta série de artigos.

 

Figura 3 – Taxas de câmbio oficiais do “hrivnya” (moeda ucraniana)

Fonte: Banco Nacional da Ucrânia

 

As taxas de câmbio fixas como âncora foram fatais para as capacidades produtivas reais nas indústrias cruciais dos países em transição. Quase tudo o que era doméstico desapareceu porque os produtores ocidentais prevaleceram com as suas moedas completamente subvalorizadas. Isto selou o destino das empresas mais importantes desde a Alemanha de Leste até Vladivostok – para sempre. Uma vez que uma empresa de transformação tenha perdido a sua base económica, só poderá ser restaurada com muita sorte, mesmo sob condições externas mais favoráveis. A sobrevivência era possível na melhor das hipóteses como local de produção para empresas ocidentais, como fornecedor de matérias-primas ou como produtor de produtos agrícolas. Já não se podia falar de desenvolvimento industrial independente nos países e de estabelecimento de estruturas saudáveis de economia de mercado.

 

O Ocidente não tinha nada a oferecer, mas alegava o contrário

Os países da Europa de Leste e muito além tornaram-se vítimas tanto da arrogância ocidental como da perspicácia empresarial ocidental. Foi facilmente afirmado que a abertura de todos os mercados iria criar automática e muito rapidamente novos campos de negócios para os países em transição, porque havia o princípio das vantagens comparativas, o que permite que mesmo aqueles países participem extensivamente na economia internacional e que não são imediatamente capazes de competir ao nível absoluto do Ocidente. Isto é simplesmente errado (como já expliquei muitas vezes). O princípio da vantagem comparativa é uma quimera, uma miragem que é sempre revelada quando não há realmente nada de substantivo a dizer.

Muito pior é a confusão e a insensibilidade sobre a questão da moeda. Contra toda a razão, aos países em transição foi vendida a ideia de que poderiam liberalizar os mercados de capitais sem estarem preparados para lhes oferecer um sistema monetário que os pudesse ter protegido da sobrevalorização e da especulação. E esta acusação não se aplica apenas aos EUA, que provavelmente nunca compreenderam como é importante um sistema monetário funcional para os pequenos países abertos. Aplica-se sobretudo à Europa, onde precisamente no momento em que, nos anos 90, quando se reconheceu que uma moeda comum poderia ter um valor considerável, se pretendia que os europeus de Leste suportassem um caos monetário sem precedentes.

Na Parte 2 olharemos, com Friederike Spiecker, mais atentamente para a situação económica na Ucrânia.

 


Nota

[1] N.T. Sobre o esquema de pensões Riester ver “Ten Years of the Riester Pension Scheme: No Reason to Celebrate”.


O autor: Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987, tendo por tese Prices, Interest and Currency Rate. On Theory of Open Economy at flexible Exchange Rates (Preise, Zins und Wechselkurs. Zur Theorie der offenen Volkswirtschaft bei flexiblen Wechselkursen). Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo.

A sua carreira profissional teve início no Conselho Alemão de Peritos Económicos, em Wiesbaden, entre 1976 e 1980; esteve no Ministério Federal de Economia em Bona até janeiro de 1986; entre 1988 e 1998 esteve no Instituto Alemão de Investigação Económica (DIW) em Berlim, onde trabalhou sobre mercado de trabalho e análise de ciclo de negócio e conceitos de política económica, tendo sido chefe de departamento.

Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Coordenador principal da equipa que preparou o relatório da UNCTAD sobre Comércio e Desenvolvimento. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop.

Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

 

 

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